Nossa Gente: dois marcos e muitas coincidências de uma luta por qualificação
Conheça o pioneirismo das Técnicas Administrativas em Educação do Campus Vitória.
“O acaso é apenas a medida de nossa ignorância”, já afirmara o matemático, físico e filósofo francês Henri Poincaré; e até o mais cético dos leitores não pode deixar de observar a série de pontos em comum nessas duas histórias. Seja por obra da providência, do cosmos, das estrelas ou apenas coincidência, o fato é que duas servidoras, com o mesmo cargo, o de bibliotecário-documentarista, do Campus Vitória, que passaram pelo Campus Colatina, marcam dois pontos importantíssimos na história da busca por qualificação e reconhecimento para os Técnicos Administrativos em Educacão (TAE) do Ifes: Jamilda Alves Rodrigues Bento que, em março de 2007, foi a primeira a conseguir o afastamento para qualificação; e no mesmo mês, porém deste ano, Sabrine Lino Pinto sagrou-se como a primeira a ter orientado um colega da mesma carreira em seu mestrado.
Sabrine é uma eteviana, como ela mesma faz questão de frisar, formou-se na primeira turma de Processamento de Dados do Campus Colatina. “Cheguei a fazer três anos de técnico em Contabilidade, mas quando inaugurou a Escola Técnica, fiz cursinho e passei, isso em 1993. Refiz o segundo grau todo e foi uma experiência ótima, pois lá eu realmente aprendi a estudar. Formei em 1996 e, apesar de ter feito estágio na área, acabei trabalhando em escritório de contabilidade. Fiquei três anos sem estudar. Em 1999 viemos pra Vitória e em 2000 eu tentei fazer Ufes, enquanto ainda trabalhava o dia inteiro. Escolhi Biblioteconomia por ser um curso noturno e por gostar desse ambiente, achei que seria legal. Não fiz pré-vestibular, fui com a cara e com a coragem, porém o estudo no Ifes foi tão forte que, fazendo a prova, eu ainda lembrava das aulas. Passei em oitavo lugar. Fiz minha faculdade de 2001 a 2005”, resume a servidora.
Em 2004, ela prestou concurso para o então Cefetes, para o cargo de Assistente em Administração, passou em terceiro lugar. “Assumi e fui para o financeiro, isso enquanto eu ainda cursava Biblioteconomia e estava indo para o último ano. Tanto que conversei com a minha chefe na época e fiz meu estágio obrigatório aqui na biblioteca. Me formei em 2005 e fiquei trabalhando como Assistente em Administração do Ifes”. Em 2006, passou para bibliotecária no Campus Cariacica, só que acabou não assumindo, porém em 2008 foi aprovada para Nova Venécia, onde passou uma curta temporada. “Lá fiz boas amizades e voltei a ter contato com a biblioteca. Foi um desafio, pois tive que trabalhar sozinha e desde que tinha me formado não tinha atuado na área. Acabei voltando logo para o Campus Vitória, mas fiquei lotada no financeiro”, conta Sabrine.
O mestrado veio em 2012, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática (Educimat/Ifes), orientada pelo professor Doutor Antonio Donizetti Sgarbi. “Fiz parte da segunda turma do programa e foi aí que tomei gosto, pois eu sempre me interessei por pesquisa, passei a estudar autores que eu ainda não conhecia. Fiquei afastada apenas seis meses e em 2014 terminei o mestrado. Em 2015, um colega me avisou de um doutorado, na área de Educação em Ciências e Saúde, no Rio de Janeiro e resolvi tentar. Acabei passando e, como tinha menos que dois anos do afastamento anterior, não podia pedir um novo no começo, então, como minhas aulas se concentravam nas segundas e terças, eu compensava o horário de estudante ao longo da semana, incluindo aos sábados”. Durante seu doutorado pela UFRJ, ela conseguiu novamente atuar em sua área de formação. “Minha orientadora, que entendeu a minha dificuldade em estar no Rio de Janeiro, tinha um projeto em uma escola na favela e essa acabou sendo a minha pesquisa: a biblioteca como espaço de ressignificação para as crianças de lá. Você vê como essas crianças precisavam daquele espaço e isso me marcou, pois eles vinham me esperar na porta. Lá não tinha uma biblioteca, era uma sala de leitura, que vinha sendo usada como depósito. Revitalizamos o espaço, comecei do zero, organizando estantes e colocando as coleções para os alunos arrumarem. Foi muito marcante e gostoso”.
A servidora defende em 2019, após três anos de afastamento, retorna ao Ifes, e é transferida para a biblioteca, e aproveita para se atualizar na área. “Foram muitos anos sem trabalhar em biblioteca, trabalhando no financeiro, fazendo doutorado em educação, estava desatualizada, então em 2020 a intenção era aproveitar para fazer um monte de curso, porém durante a pandemia fui convidada pelo meu ex-orientador de mestrado a ingressar em um grupo de pesquisa. No final daquele ano, o Donizetti, me avisou que o Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH) ia abrir edital para o credenciamento de professores. Fiz minha inscrição e acabei passando. Em 2021 comecei efetivamente no programa, como voluntária, e em 2022 fui convidada a ministrar a disciplina de Metodologia, isso tudo fora do meu horário de trabalho no Ifes”.
Já participante do PPGEH, Sabrine recebe de seu ex-orientador, e agora colega, o convite para orientar Wânia Fernandes de Souza Ramos, pois ele já estava com a carga horária sobrecarregada. “A Wânia veio como um desafio no início, mas falei que íamos aprender juntas. Ela abraçou a causa e ficou superfeliz, como a gente já se conhecia, isso facilitou muito. Eu pude ver o crescimento dela, muito tímida na escrita no começo, mas melhorou muito, fui dando as dicas. Incentivei ela a participar e se envolver no que pudesse, mesmo que não fosse usar isso na dissertação, afinal, isso nunca seria desperdiçado. Ela participou de um evento internacional em São Paulo e acabou muito elogiada. Foi um crescimento nosso e um privilégio poder acompanhá-la”, afirma a servidora, que hoje tem três outros orientandos sob sua supervisão.
Em março, o marco
Em 22 de março passado, Wânia, lotada na Coordenadoria Geral de Gestão de Pessoas e parceira de Sabrine neste marco, defendeu sua dissertação, que tinha por tema: Educação e Formação Humana Integral: uma discussão sobre a mercantilização do ensino na educação superior. Graduada em Tecnologia em Processamento de Dados, em 1996, ela já possuía duas pós-graduações, em Psicanálise Clínica e em Gestão de Recursos Humanos, antes de se afastar para a qualificação. “Foi uma conquista. Eu sonhava em fazer o mestrado, mas parecia impossível. Hoje eu vejo como um algo que se tornou realidade. Acho que vale a pena lutar para realizar esse tipo de projeto, não é simples e nem fácil, mas depois que passa toda a turbulência, a gente olha para trás e vê que valeu a pena. Isso me ajudou a crescer e perceber o quanto temos condições de ir um pouco mais além. Faria tudo novamente”, compartilha a servidora.
Dentre as diversas histórias de luta, temos também a da ex-aluna de Estradas do Ifes, Ana Raquel de Souza Rodrigues, da Coordenadoria de Gestão Pedagógica, que, apesar de não ter se afastado para o mestrado, teve o apoio dos servidores do setor. “Após o ensino técnico, cursei Pedagogia na Ufes, especializei-me em Gestão Educacional e atuo como pedagoga no Ifes desde 2004. A oportunidade de cursar o mestrado em Currículo e Formação de Educadores, na Ufes, apareceu ainda nos primeiros anos de ingresso no então Cefetes. Na época estava em período probatório e não consegui afastamento, mas abracei com grande vontade, me empenhei bastante para conciliar a atividade profissional e acadêmica, e pude contar com a colaboração e parceria dos colegas. Essa qualificação levou a ampliação dos conhecimentos na área em que atuo e, sobretudo, possibilitou-me lançar olhares mais críticos entre as relações da escola com outros setores sociais e dimensões da vida. A minha vocação sempre esteve voltada às potencialidades do sujeito que aprende; daí afirmo que essa qualificação aguçou meus interesses em pesquisar e aprender sobre os desafios que perpassam a escola, buscando caminhos e ferramentas para auxiliar o desenvolvimento integral do aluno”.
Da mesma coordenadoria e atualmente afastada para o doutoramento em Linguística na Ufes, na linha de Linguística Aplicada, Fernanda dos Santos Nogueira fez parte da primeira turma de bacharelado em Letras Libras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na modalidade à distância, em uma parceria com a Ufes em 2008. “Até aquele ano eram pouquíssimas as formações específicas em tradução e interpretação de língua de sinais aqui no Estado, tanto que realizei a minha primeira em 2006, promovida pelo Instituto Mãos que Falam. Esse mesmo curso presencial, na Ufes, inicia somente em 2014 e em 2015 tive o privilégio de atuar nele como professora substituta, isso antes de vir para o Ifes. Após o Letras Libras, cursei a Licenciatura em Língua Portuguesa e na sequência realizei a especialização em Educação Especial na perspectiva da inclusão e, por fim, entrei para o Mestrado em Educação, na linha de pesquisa Educação Especial e Processos Inclusivos. Atualmente, sou doutoranda em Linguística na Ufes, na linha Linguística Aplicada. Como sou tradutora e intérprete educacional o mestrado foi e é muito importante, ele possibilitou a expansão dos meus conhecimentos e provocou transformações em mim, de modo que pude pensar outras possibilidades para conduzir minhas práticas na tradução e interpretação, na educação e na relação com os meus pares. Em todo o meu processo formativo precisei, como a maioria das pessoas, me dividir entre trabalhar e estudar. Por isso, entrar no doutorado e conseguir a licença foi algo espetacular que nunca imaginei ser possível. Então, sou muito grata por ser servidora pública federal e ter a oportunidade para total dedicação aos estudos. Isso faz muita diferença em como passamos, lidamos e experimentamos nosso processo formativo. O afastamento, além de contribuir com a nossa dedicação nos estudos e pesquisas possibilita que nosso foco esteja mais direcionado, não sendo necessário se dividir para realizar as atividades da rotina de trabalho. Este direcionamento compreendo que contribui com a nossa saúde mental. Por isso, o meu desejo é que todos tenham a mesma oportunidade”, conta Fernanda.
A também doutoranda e ex-aluna de edificações do Ifes, Simone Oliveira Thompson de Vasconcelos, lotada no Gabinete da Direção Geral, graduou-se em Farmácia e Bioquímica pela Ufes e atuou na área por dez anos antes de se ingressar como servidora do Ifes em 2011. Ela acabou prestando Enem – como forma de incentivar o filho e o marido – e passando para vários cursos superiores do Ifes. Optou pela Licenciatura em Letras Português, na modalidade à distância, finalizada em 2015. Quando a instituição ofereceu uma turma especial do Educimat, ela aproveitou a oportunidade e usou o afastamento para licença para capacitação para qualificar e defender a sua dissertação. “A segunda graduação e o mestrado me fizeram olhar a instituição com outro olhar. Pude observar as dificuldades enquanto estudante e entender melhor a dinâmica, podendo apontar melhorias em diversos setores para a gestão. Motivada pelo sonho de ser docente desta instituição e pela nova oportunidade proporcionada pelo Ifes aos seus servidores, ingressei no Doutorado Interinstitucional (Dinter) em Cognição e Linguagem, uma parceria entre o Ifes e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf). Hoje curso o doutorado e sou grata à Instituição por oportunizar aos seus servidores formação para a vida. Considero cada curso feito aqui importante para a minha formação integral”.
A possibilidade de se afastar para qualificação modificou o cenário da formação nos quadros do Ifes. Em 2005, quando foi redigido o Plano de Desenvolvimento dos Integrantes do Plano de Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos em Educação – “PCCTAE” – no então sistema Cefet-ES, que englobava os campi de Cachoeiro de Itapemirim, Cariacica, Colatina, São Mateus, Serra e Vitória, havia 271 servidores dessa carreira, dos quais apenas 9, cerca de 3%, tinham especialização, a então maior titulação, segundo a pesquisa realizada. Hoje, apenas no Campus Vitória, dos 159 TAEs, 67 possuem especialização, 46 mestrado e 8 doutorado, o que nos leva a quase 80% do total com titulação superior a especialista, o que permite, além do recebimento do incentivo financeiro, a entrega de serviços e processos com mais qualidade para toda a comunidade.
A precursora
Essa nova realidade não seria possível sem a luta de vários servidores, dentre eles Jamilda Alves Rodrigues Bento, há 29 anos no Ifes, graduada em Biblioteconomia, História e Pedagogia, e a primeira TAE a conseguir o afastamento para qualificação em março de 2006. Ser uma precursora não foi novidade na vida da bibliotecária documentalista, também uma das primeiras filhas de paneleira a frequentar um curso superior. Sobre a escolha por essa formação ela diz: “vindo de escola pública escolhi um curso que eu tinha quase certeza de que iria passar na época e a biblioteconomia foi a minha opção. Eu tinha que entrar na Ufes de qualquer jeito e essa foi a forma que eu achei, o que pra mim não foi difícil, porque eu sempre gostei de biblioteca; fui por eliminação, mas escolheria de novo fazer, pois tive bons professores e foi um divisor de águas na minha vida e, segundo as pessoas falam, inspirou a outros. Na verdade, o meu sonho era fazer História, tanto que fiz na sequência, finalizo Biblioteconomia em 88 e começo História em 92, mas aí vou fazer em um tempo bem maior, vou me formar em 98, foram seis anos fazendo matérias à noite. Eu precisava dessa segunda graduação, até para ter essa oportunidade de encontro com os professores do curso e de ter essas discussões que são grandiosas para o entendimento da humanidade”.
Sobre o começo de sua carreira como servidora ela conta: “entrei no Ifes em 94, só que vou para a primeira unidade descentralizada, que é Colatina, e, como tinha uma criança de três anos na época, fiquei lá apenas quatro meses, depois continuo minha caminhada aqui em Vitória. Na verdade, eu tinha feito prova para a Ufes, só que o Ifes aproveitou o concurso”. Em 2007 ela faz parte da primeira turma do Mestrado Interinstitucional (Minter), em parceria com a Ufes, que contemplou também os técnicos. “Na época ainda não existia resolução que viabilizasse o afastamento do técnico administrativo e eu ficava buscando junto ao diretor na época, Jadir José Pela, a viabilização desse direito e quando eu quero alguma coisa eu sou insistente”, conta aos risos. “Sempre sonhei em fazer o mestrado, então entrei porque realmente era um desejo de estudar, de alcançar alguns níveis, independentemente de ter aumento salarial”.
Ela é uma das precursoras também no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), sendo umas das integrantes desde a sua primeira formação, em 2009. “A gente começa a trazer essa discussão para dentro do Instituto. Fizemos alguns seminários e depois fomos trabalhar dentro do Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), que em uma de suas partes aborda a questão étnico-racial. Até 2015 o Neab era exclusivo do Campus Vitória, depois que veio a necessidade de que essa discussão estivesse presente em toda a rede; e para adequação à lei 11.645/2008, o nome foi alterado para Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi). O fato é que hoje temos visto várias ações que estão sendo desenvolvidas na rede toda; porém, na verdade, deveríamos ter uma disciplina específica sobre educação para as relações étnico-raciais, segundo a legislação sobre o tema. Fiz um levantamento há um tempo atrás e só tinha em Itapina. O que temos é a cadeira chamada Diversidade, que traz várias temáticas, mas acaba não aprofundando em nenhuma delas. No ensino médio os professores da área de ciências humanas até trabalham essa questão, mas na graduação você não tem esse recorte”.
Para além de suas lutas, a servidora tem uma produção que engloba livros e audiovisual. Ela é a autora do Conhecendo as Benzedeiras de Goiabeiras Velha e participa como pesquisadora na obra Nova cartografia social dos povos e comunidades tradicionais do Brasil: expressões culturais e ofícios tradicionais em Goiabeiras Velha, Vitória, Espírito Santo. Ela assinou a direção, produção e roteiro, junto com a jornalista Beatriz Lindenberg, da websérie Griôs de Goiabeiras; e, durante a pandemia, produziu, com o documentarista Ricardo Sá o filme O Caminho das Mãos.
“A luta para todos nós, servidores, nunca foi fácil, mas para o Técnico Administrativo em Educação é maior, nos exige uma resistência, uma persistência e isso não nos falta. Tanto que hoje temos vários colegas com mestrado e doutorado. Essa política que me permitiu o afastamento é um embate de várias mãos, corpos e pessoas. Eu fui a primeira, mas estava representando uma luta coletiva de muitos anos e daqueles que não tiveram condições de fazer uma qualificação, até porque não puderam se afastar. Isso me traz esse sentimento de que a partir daquele momento eu e todos que vieram podemos usufruir desse direito e saber que essa é uma conquista da classe. Era Jamilda que estava ali, mas poderia ser qualquer pessoa”, relata a servidora sobre mais um capítulo na luta dos TAEs por um lugar de reconhecimento. E a quem é dado o privilégio de escutar esses relatos – ou de lê-los nessas linhas –, fica a certeza de testemunhar empenhos e lutas que dignificam verdadeiramente este Instituto.
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